JORGE VELHOTE

COMO SE A NOITE APENAS FOSSE UM LEQUE DE VIDRO

“Permanece na luz a mão enquanto na sombra, na exactidão pura da noite, o mar chega com os seus ossos e melodia. Há uma fotografia em que tu estás, com um chapelinho e um lápis. E logo ao centro, rodeada de vento, a tua saia roda como um búzio. É já tarde, dirás mais tarde. E como num verso, dançando, uma flor de fogo sobe para que alguém desça. E nos dedos trás um fio altíssimo. O que se escuta é o ruído da maré que chega. E o mundo, na sua antiguidade, cresce nos ramos das árvores. Inclina-se como num beijo infinito ou rumoroso labirinto. Como a chuva que sabes trará os peixes e o pólen que derramarás para que a terra se erga como num espelho a tua boca.

Tudo explode e efémeros são os cântaros e nómadas as constelações que observas enquanto no teu olhar crepitam segredos. Mais tarde, dirás, o plátano era vermelho excessivo e no crepúsculo os cães ladravam delirantes. É impossível a cinza tingir os pássaros, alguém diz, e tremulas como se transparentes fossem as suas asas e soubesses a folhagem dos seus destinos. E como lâmina breve o ar ruge, para que no sangue debiquem as lágrimas dos que morrem. A criança corre com os seus pés de musgo, e no seu delírio ou arco de luz perde as coisas inacabáveis, e obscura é ou ardente na sua noite de chuva. Alguém chega e diz, finalmente, e o teu corpo ondula como se voasse e incalculável fosse no teu nome a haste da alegria. E infindável na floresta sílaba a sílaba o sol fosse uma pedra. O corpo sem fim das mulheres que tecem intermináveis a perfeição. E assim se nasce, alguém disse, e no interminável alguém alcança o abismo ou margem súbita e calcula nas vozes a luz para que na escuridão se meça como num claustro o veludo da penumbra ou a beleza irrecuperável do instante. No clamor alguém canta, e tu em silêncio escutas o que na tua pele vibra. Uma canção despenha-se nos teus dedos como se nos teus lábios a vibração do mundo fosse o centro. Era de manhã, dizias, e os animais vinham lambendo a terra estridentes. Como se a noite apenas fosse um leque de vidro ou no teu silêncio a lua beijasse os teus cabelos. Estou triste, escutaste, e na verdade era como se o teatro do mundo ou um vendaval dobrasse um lençol sobre ti. Ou adiasse mansamente a loucura. Ou o amor. Essa força veemente que rompe dentro de um corpo e de outro corpo para que a claridade se incendeie vertiginosa como o lume.

Viste cavar a terra de joelhos, as mulheres depositarem sementes, mas nunca saberás se enterravam a luz ou as agulhas com que cerziam o tempo. Eu sou a água que arrasta a noite, o dilúvio cintilante dos relâmpagos, sussurraram para que não escutasses, e gritas-te, quem está aí, enquanto a linha do horizonte subia erguendo os teus braços, os pássaros, as nuvens, e longínquas fossem, sobre a terra, as cartas da cegueira. Ou perdendo-se, as borboletas esvoaçassem demorando a infância.

 

 

A miragem que arrebatará a velocidade dos teus pés ou os anéis que afogarás nas migrações do lixo. Antigamente, escutavas, e dizias, a barbárie, o gume de uma flor oblíqua, a imensa cortina cavando o vento, uma pedra cheia de luz como uma doença ou clamor infinito, apenas para que alguém aguardasse o teu eco. E sabes que na tua boca cresce o veneno da língua. O sábio fragor dos eclipses ou a convulsão das marés. E sabes que é tarde para guardares o mundo numa caixa. Misturares os deuses nas suas ruínas de papel e lume absoluto. Plantar uma árvore, inventar uma palavra ou a hélice que letra a letra afogue o dilúvio da melancolia. E alguém chega atrasado folheando as árvores, as mãos na neve, dividindo o sangue insubmisso pelas falésias, os bolsos cheios de nomes como lâmpadas rasgando a beleza intermitente. E dizes, é apenas a morte. A caligrafia com que se escrevem todas as histórias.”