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VALTER HUGO MÃE

“Os quadros de Susana Bravo são como charadas a misturar o quotidiano com o mundo da memória. Vemos o que é e o que foi, numa acumulação de instantes e referências como se o tempo se expusesse transversal e inteiro. A colagem, efetiva ou sugerida, é, pois, um dos recursos mais notórios da artista, fazendo desse efeito de mescla de técnicas e materiais um tópico a sublinhar o salto temporal e a ilustração geral de uma história.Podemos ver os trabalhos de Susana Bravo como narrativas, essas imagens eminentemente discursivas que adotam movimento e se projetam aludindo sempre a uma certa duração. São coleções de instantes que, exatamente pelo seu efeito de série, adquirem essa ideia de junção que compõe o tempo, um tempo.São geralmente histórias de mulheres, de meninas, em que parece estarmos a abrir a sua caixa de segredos, onde se guardam brinquedos e brincadeiras. Onde os objetos, a maior parte das vezes, marcam presença também pelo gesto. Percebemos as coisas porque estão representadas ou porque tacitamente se inscrevem na imagem.

A reiterar a feminilidade da sua arte, sempre me ocorre que Susana Bravo joga com tecidos, a noção de tecido, que acaba por impor texturas e padrões diversos nas telas. Não que obstinadamente decore os vestidos das mulheres e das meninas, mas categoricamente as representa nos seus vestidos, ocupando volumetricamente a tela, sempre mostrando como a silhueta feminina se disfarça e revela entre tecidos. Gosto muito desse apelo constante ao redondo das roupas, traz um imaginário de bonecas de trapo, de jogo de meninas que inventam histórias para figuras que adorariam dotar de vida.

Num certo sentido, o trabalho de Susana Bravo sugere-me essa magia de fazer das bonecas filhas e mães e amigas e distribuí-las pela imagem como as crianças distribuem no chão a fazer de conta que constroem casinhas e sonham com destinos perfeitos e amores e muita felicidade.

 

Por outro lado, é interessante notar como o trabalho de Susana Bravo passa geralmente pelo retrato de interiores, uma espécie de acontecimento da casa, a intimidade familiar a que apenas um grupo restrito de pessoas tem acesso. Quer isto dizer que estamos muitas vezes diante da problematização da família e do modo como ela se desenvolve, do modo como ela se começa por imaginar e como depois se consuma. É muito significativa a espacialização das figuras, essa maneira como quase sempre se parte de um cómodo específico da casa, geralmente remetendo para um lugar de algum descanso, lazer ou cuidado decorativo. Vemos quartos ou salas. Percebemos as suas mesas, por exemplo, o chá ou o café sobre as mesas. As refeições como comunhão, motivo de reunião efetiva ou desejada. Também isso pode corroborar aquela relação de brincadeira de meninas, o uso do quadro como casa de bonecas. A ficção, pela pintura, do universo todo especial das meninas.

Impressiona-me muito a delicadeza que sempre sobressai das peças. Nunca se tornam completamente áridas, e não sucumbem ao pendor fantasmático de algumas figuras. As peças de Susana Bravo sempre se salvam de serem agressivas. Acarretam uma melancolia grande, como todas as famílias se fazem dessa melancolia de ganhar e perder elementos, mas sempre resultam sobretudo como ávidas de encanto. Procuram ser como encantadas. Creio que, quando crianças, é o que esperamos do mundo. Sim, também creio que se resume a isto: as telas de Susana Bravo são encantadas.”