“O desejo, o instinto, a liberdade e a fuga de um quotidiano trivial. Teolinda Gersão conta-nos, em “Um Casaco de Raposa Vermelha” (A Mulher que Prendeu a Chuva, 2007), uma história de metamorfose – a transmutação de uma realidade imposta. Uma empregada bancária comum repara, um dia a caminho de casa, num casaco de raposa vermelha exposto numa montra. Nessa noite, a mulher não contém o entusiasmo do seu vislumbre e mal consegue dormir.

Excitada, corre logo de manhãzinha a comprar o objeto do seu desejo, mas percebe, então, que o casaco fica bastante acima das suas possibilidades. A nossa personagem combina com a vendedora um pagamento em prestações e compromete-se a levar o artigo consigo apenas quando efetuar a última parcela. Durante esse tempo, a mulher visita a montra da loja todas as noites, em contemplação e crescente excitação, absorvendo, a pouco e pouco, um sem-fim de sensações arrebatadoras. É nesse período que, paulatinamente, se dá a transformação da personagem e a alma de mulher se envolve no corpo do mesmo animal que dá a pele ao casaco. A racionalidade da vida diária começa a perder-se nas emoções livres de obrigações e censuras sociais humanas, para se libertar em instinto, natureza e alegria descomplicada de interpretações e regras. Neste conto, e à semelhança dos escritos clássicos de Ovídio, um simples olhar desencadeia uma sucessão de sensações, desejos, entusiasmos e impulsos que levam à metamorfose: o banal que segue o fervor; o expectável que se surpreende; a mulher que vira raposa.

Domesticidade ou aventura? Trivialidade ou imprevisto? O provável ou o acaso? “Raposas à porta” é a representação da dualidade e ambivalência da alma humana da mulher. A simbologia que a raposa aporta – matreira, esperta, astuta – funde-se, na literatura e no folclore, com os comportamentos humanos de conotação pejorativa, desleais. Mas será esta uma humanização da raposa? Porque sem essa consciencialização, resta-nos cobiçar a beleza, a superioridade, a liberdade e a natureza que o animal encerra. Neste quadro pretendo retratar o aprimorar de um sentido animal, mostrar a sede de aventura e confrontá-la com um dia-a-dia cuidado, domesticado. Um reboliço de emoções e uma mistura de cores que reflectem sensibilidades por libertar – a fuga ao destino ordinário.”

Ana Portocarrero

"Foxes at the doorstep" / "Raposas à Porta"
Mixed Media on Canvas / Técnica Mista sobre Tela
150 x 150 cm
2017
Photography / Fotografia: Hugo de Almeida
Sold / Vendido